Ricardo Melo, lido no Blog do Enock
Se o Supremo Tribunal Federal pretende recuperar sua respeitabilidade, só há uma saída: refazer, do começo ao fim, o julgamento do chamado “mensalão” petista. A admissão, pelo presidente do STF, de que penas foram aumentadas artificialmente em prejuízo dos réus fez transbordar o copo de irregularidades da Ação Penal 470.
Relembrando algumas: a obrigatoriedade de foro privilegiado para acusados com direito a percorrer várias instâncias da Justiça; a adoção do princípio de que todos são culpados até prova em contrário, cerne da teoria do “domínio do fato”; o fatiamento de sentenças conforme conveniências da relatoria. E, talvez a mais espantosa das ilegalidades, a ocultação deliberada de investigações.
A jabuticaba jurídica tem nome e número: Inquérito 2.474, conduzido paralelamente à investigação que originou a AP 470. Não é um documento qualquer. Por intermédio dos 78 volumes do Inquérito 2.474, repleto de laudos oficiais e baseado em investigações da Polícia Federal, réus poderiam rebater argumentos decisivos para sua condenação.
A negativa do acesso ao inquérito foi justificada da seguinte forma: “razões de ordem prática demonstram que a manutenção, nos presente autos, das diligências relativas à continuidade das investigações [...], em relação aos fatos não constantes da denúncia oferecida, pode gerar confusão e ser prejudicial ao regular desenvolvimento das investigações.” O autor do despacho, de outubro de 2006, foi ele mesmo, Joaquim Barbosa.
Imagine a situação: o sujeito é acusado de homicídio, o julgamento do réu começa e, durante os trabalhos da corte, antes mesmo de qualquer decisão do júri, a suposta vítima aparece vivinha da silva. “Ah, mas outra investigação afirma que ele estava morto”, argumenta o promotor. “Isto vai criar confusão”. O julgamento continua. O vivo respira, mas nos autos está morto. E o réu, que não matou ninguém, é condenado por assassinato.
O paralelo parece absurdo, mas absurdo é o que fez o STF. A existência do Inquérito 2.474 tornou-se pública em 2012, em reportagem desta Folha sobre o caso de um executivo do Banco do Brasil, Cláudio de Castro Vasconcelos.
A conexão com a AP 470 era evidente, pois focava o mesmo Visanet apontado como irrigador do “mensalão”. O processo havia sido aberto seis anos antes, em 2006, portanto em tempo mais do que hábil para ser examinado.
Nenhum desses fatos é propriamente novidade. Eles ressurgiram em janeiro deste ano, quando o ministro Ricardo Lewandovski liberou a papelada aos advogados de Henrique Pizzolato. Estranhamente, ou convenientemente, o assunto passou quase despercebido.
É hora de acender a luz. O comportamento ao mesmo tempo espalhafatoso e indecoroso do presidente do STF tende a concentrar as atenções no desfecho da AP 470. Neste momento, por razões diversas, pode ser confortável jogar nas costas de Joaquim Barbosa o ônus, ou o bônus, do julgamento. É claro que seu papel é inapagável, mas ele tem razão ao lembrar que o fundamental foi decidido em plenário.
No final das contas, há gente condenada e presa num processo que tem tudo para ser contestado. O país continua sem saber realmente se houve e, se houve, o que foi realmente o chamado “mensalão”.
Conformar-se, ou não, com o veredicto da inexistência de formação de quadrilha é muito pouco diante das excentricidades jurídicas, para dizer o menos, que cercaram o julgamento e têm orientado a execução das penas.
Embora desperte curiosidade justificada, o que menos importa é o futuro de Barbosa. Quem está na berlinda é o STF como um todo: importa saber se o país possui uma instância jurídica com credibilidade para fazer valer suas decisões.
Ricardo Melo, 58, é jornalista. Na Folha de S.Paulo, foi editor de “Opinião”, editor da “Primeira Página”, editor-adjunto de “Mundo”, secretário-assistente de Redação e produtor-executivo do TV Folha, dentre outras funções. Atualmente é chefe de Redação do SBT (Sistema Brasileiro de Televisão). Também foi editor-chefe do Diário de S.Paulo, do Jornal da Band e do Jornal da Globo. Na juventude, foi um dos principais dirigentes do movimento estudantil “Liberdade e Luta” (“Libelu”), de orientação trotskista.
Fonte: bloglimpinhoecheiroso.com
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