“Acho que a tortura em certos casos torna-se necessária, para obter confissões.”
Ernesto Geisel[1]
Carta Capital / Roberto Amaral - A História não se repete, mas no Brasil ela é recorrente, porque, na culminância de todos os fatos construtores de nossa vida política se sobrepõe o acordo das elites contra os interesses do povo. A este, figurante em espetáculo no qual faz ‘escada’ para o ator principal cabe, quando muito, um lugarzinho na ‘geral’, do teatro, às vezes do circo, para assistir os donos do poder traficar em seu nome.
Com o povo nas ruas, as ‘elites’ decidem nos gabinetes de Brasília e nos escritórios da Avenida Paulista. Assim sempre foi e tem sido, desde 1822, passando pela República, um movimento de militares, poucos, meia dúzia de oficiais generais, passando pelas sucessivas insurreições dos ‘tenentes’, pela ‘revolução’ de 1930 e pelo ‘Estado Novo’, um conluio entre o presidente civil e constitucional com oficias que nos impôs oito anos de ditadura; assim foi na queda dessa mesma ditadura, operada pelos generais que a haviam constituído; assim no golpe de 1954 (quando ao povo, finalmente nas ruas, restou, apenas, chorar seu líder morto); assim nas quarteladas dos anos 50 e nos golpes de 1955 e 1964, ‘assistidos’ por um Congresso genuflexo.
Tudo em nome do povo, mas jamais com o povo ou pelo povo.
Desta forma e por tudo isso, tivemos a instauração da ditadura militar-tecnocratica-empresarial-midiática de 1964, a ditadura dos donos do poder, os donos de sempre, porque deles é a palavra final e, vencedores, a colheita das batatas. E assim seria (triste maldição de deuses perversos) na suada redemocratização de 1984. Porque o ditador podia sair pelas portas dos fundos do Palácio do Planalto (simbolismo para estudo dos exegetas), mas a nova ordem não podia derrogar a ordem vencida.
Ao contrário de gregos, espanhóis, argentinos, chilenos e uruguaios, que romperam com o regime militar, haveríamos de com seus remanescentes cohabitar. Com o povo nas ruas e as tropas nos quartéis, implodido o colégio eleitoral montado pela ditadura para preservar-se, eleito Tancredo, a ruptura com a ordem vencida foi substituída pela transação, mediante a qual o regime militar derrotado se projetou no regime democrático constitucional-civil vitorioso, construindo “o modelo penosamente negociado (grifo meu) do transformismo brasileiro”, na frase de Fernando Henrique Cardoso, em palestra no ‘III Fórum Cone-Sul’ (maio de 1986)[2]. Nessa mesma intervenção, o ex-presidente revela a existência de uma ‘Carta compromisso’, a qual, acrescentamos nós, teria assegurado a posse tranquila, não mais de Tancredo mas de Sarney (isso é outra história, bem brasileira…). FHC, então senador da República pelo PMDB de São Paulo e ainda sociólogo, não revela os negociadores da Carta-transação, nem quem a firmou. Não se sabe onde está guardada, quem vigia seu cumprimento. Suspeita-se que o sociólogo teria sido, até pelos seus dotes confrontados com os dos generais, seu principal redator. Escriba ou não, o ex-presidente lembra, ainda, que “tanto as eleições diretas quanto a Constituinte foram jogadas para o futuro e a convocação da Assembléia Nacional Constituinte foi feita, conforme a Carta Compromisso, sem que houvesse a ‘exclusividade’, quer dizer os representantes serão (foram) eleitos como deputados e senadores, funções que acumularão (acumularam) com a de constituinte’. (…) A regra, portanto, foi a da postergação e da indefinição da ordem político-institucional. Assim, a transição lenta e gradualíssima de Geisel presidiria o primeiro governo civil. Assim mais uma vez se realizaria a sina que persegue nossa história: a conciliação substituindo a ruptura, o ‘jeitinho’ dando voltas à História.
Entre a anistia e a inesperada posse de Sarney (o presidente do partido do governo militar eleito vice-presidente na chapa da oposição civil) estava/estaria (leitmotif da ‘Carta’?), a garantia, jurada pelos militares, de respeito ao colégio eleitoral rompido pela pressão popular. Sabe-se que Tancredo Neves adiou seu tratamento, ao preço da própria morte, com receios, que não deveriam ser infundados, de a transação não ser respeitada. Sabe-se, é a lição dos fatos, que a Constituinte evitou mecanismos ensejadores de qualquer sorte de apuração de responsabilidades militares.
Sobre os crimes políticos, sobre os crimes comuns.
Sabe-se que ninguém foi punido.
Mas as Forças Armadas (estaria esse direito contido na transação?) continuaram defendendo a legitimidade do golpe de 1964, mesmo pela voz de oficiais generais em comando, e até por insólitas ‘Ordens do dia’ emitidas todo 31 de março, o que é inaceitável, tanto quanto é inaceitável a resistência à criação, constituição e funcionamento da Comissão da Verdade (cujas atribuições desde sua origem intentam limitar), Comissão que a ninguém ameaça, pois seu escopo é permitir que a nação conheça uma parte de sua História. Sombria que seja. Não lhes basta, aos militares, fardados ou não, a impunidade; exigem o silêncio, a borracha ou a tesoura.
Assim, constrangem o poder civil a que estão constitucionalmente subordinados.
Não resta dúvida seja quanto a existência de crimes, seja quanto a responsabilidade do Estado, reconhecida pela ‘Lei dos desaparecidos’ (lei nº 9.140/95), pois nenhum ato de tortura ou assassinato foi cometido sem a sanção da cadeia de comando. Não se quer, mais, discutir os crimes políticos representados pelo ataque à ordem constitucional, à soberania popular e à democracia representativa. São águas que não mais movem moinho. O que a sociedade quer é conhecer os crimes comuns praticados contra cidadãos sob a custodia do Estado, praticados em dependências do governo, por funcionários públicos civis e militares em serviço. Nas masmorras, cidadãos indefesos, vitimas de sequestros e submetidos a prisão ilegal, foram torturados, um sem número deles assassinados, e seus corpos ocultados. São os ‘desaparecidos’, eufemismo insuportável e desrespeitoso. A Comissão da Verdade, que até hoje não foi constituída, não vai apurar autorias, julgar ou punir. Vai apenas (e isso é um mínimo minimorum), fazer um inventário. Não podemos punir, como fizeram e fazem argentinos e chilenos, vá lá. Mas não podermos sequer conhecer os fatos, já será caminharmos para as raias do absurdo.
É irrelevante que dirigentes de clubes recreativos e oficiais de pijama digam isso ou aquilo. Grave é quando o pronunciamento vem da caserna. A Secretaria de Comunicação do Exército, já no governo Lula (2004) lembra a jornalista Miriam Leitão em artigo recente[3], a pretexto de responder a jornal brasiliense que publicara foto que supostamente seria de Vladimir Herzog (assassinado nas dependências do II Exército, SP, ainda na Presidência do Gal. Geisel) emite Nota (que não fora previamente submetida ao Ministro da Defesa, o embaixador José Viegas) em que justifica a tortura e o assassinato de presos políticos, tortura que o herói da distensão defenderia em suas memórias. O Exército não se retratou e o ministro pediu demissão. O general comandante da força ficou no cargo.
A questão não é exclusivamente de hierarquia, mas, perigosamente ideológica, e isso é grave. Passados 40 anos, muitos militares continuam pensando como pensavam em 1964 e continuaram pensando durante toda a ditadura e continuarão pensando se a democracia não alterar o conteúdo de sua formação autoritariamente anacrônica. Quando descobrirão que a Guerra Fria acabou?
As Forças Armadas precisam se livrar de um passado indefensável e caminhar ao lado da sociedade brasileira na construção desse novo pais. Isto é o que todos desejamos.
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[1] Em depoimento ao CPDOC da FGV, disponível em Geisel, organizado por Maria Celina D’Araújo e Celso Castro e editado pela Fundação Getúlio Vargas-Editora, p. 225. O general da distensão reclama, apenas, da incompetência de seus camaradas: “O inglês, no seu serviço secreto, realiza (a tortura) com discrição. E o nosso pessoal, inexperiente e extrovertido, faz abertamente”.
[2] O texto integral da palestra (‘Um modelo político-institucional’) está na revista Comunicação&política (v. 1. nº 8), pp. 98-107.
[3] ‘Círculo militar’, O Globo, 11.3.2012
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