Chega ao fim a “Era Lula”. Em mais uma despedida, uma recordação de seus inesquecíveis discursos.
Muito aplaudido ao ser anunciado, ele chega ao púlpito com um maço de papéis nas mãos. Quando as palmas cessam, sorriso farto na boca, ele abaixa os óculos que quase caem pelo nariz e começa um sequência de “quero agradecer a presença” de fulano, beltrano e sicrano, que são as autoridades presentes – nomes e respectivos títulos – e os promotores da solenidade ou do evento. Lê as fichas que um assessor esbaforido preparou às pressas, pois eles acabaram de chegar ao local e havia pouco tempo para saber quem já estava lá e deveria ser enunciado como manda o protocolo.
Finda a longa lista, dá uma ajeitada no maço de papéis e afasta as fichas. Agradece também a todos os convidados e começa seu tão esperado discurso.
Lê o que está escrito nos papéis, algo preparado com antecedência por um ou mais assessores. Às vezes, por ministros ou secretários. Fruto de um trabalho sério de pesquisa prévia sobre o tema, muitas vezes a exigir horas de labuta. Desfila então alguns números e cifras referentes ao assunto que justifica o evento. De repente, tira os óculos e se põe a falar sem olhar para os papéis. Recorda alguma frase dita por quem o antecedeu no palco e a comenta. Dela sai uma outra lembrança, que gera uma “pequena história que eu vou contar para vocês”. Vem a narrativa, de algo muito recente que ocorreu no sertão da Bahia em sua última visita. Ou de algo mais antigo, “dos tempos lá do ABC”.
Todos ouvem com grande interesse. Surgem aplausos, risos, às vezes, gargalhadas. Aí, ao olhar para a plateia ele mira um conhecido que o inspira: “ô Abílio, nas próximas férias você precisa deixar de ir pra Paris e ir lá pras margens do São Francisco e ver que beleza é aquilo”. Abílio, o Diniz, sócio do Grupo Pão de Açúcar, dá uma bela risada e o resto da plateia o acompanha.
Ele retoma o fio da meada, cita um bocado de outros números e estatísticas, agora sem ler em lugar algum. Surge um inevitável “nunca antes na história deste País”, que um jornalista atento vai questionar no dia seguinte ao lembrar que há nove anos já tivemos situação parecida. Ou no governo de Prudente de Morais.
Conta outra história, fala de alguém mais da platéia. “Eu tava lá em Londres com o Celso Amorim e… – lembra Amorim? – o Bush chegou com aquela cara e…” e aí se vão mais uns minutos de história. E risos e aplausos.
O tempo corre, mas ninguém sente. Num instante, ele olha pro relógio e fala: “bom, eu tenho que ir parando por aqui, porque tenho um compromisso agora lá em Manaus e se eu não chegar a tempo o governador de lá me mata”. Ouve-se um “ah” de decepção em algum canto da sala. Ele pega os papéis de novo, coloca os óculos e diz “o pessoal preparou aqui este discurso pra mim, mas se eu for ler agora vai demorar muito”. Dá uma passada de olhos na papelada, cita algo que está escrito e os guarda de novo (neste momento eu penso como deve ser dura a vida dos seus assessores). E desanda a falar de improviso mais uns 15 minutos, até que uma frase de efeito ou uma história ainda mais simbólica o leva a decretar o encerramento da sua fala, sob muitos aplausos.
Findo o ato, seguranças e assessores o cercam, porque o tempo urge, ele precisa ir imediatamente para o carro que o espera, estão atrasadíssimos. Mas o cerco da plateia é maior, muita gente quer, ao menos, dar um tapinha nas suas costas. O apresentador encerra oficialmente o ato, que já estava encerrado de fato desde que ele parou de falar. Ele vai saindo do recinto, com um monte de gente junto. Para no meio do caminho, fala algo ao ouvido de alguém. E segue.
Passaram-se oito anos, quase três mil dias. Quantas vezes algo similar ocorreu? Quantas centenas de discursos ele fez? Ou foram milhares? Quantas histórias contou? E os apertos de mão? Os abraços? Os simples toques ou tapinhas nas costas? Quantas pessoas têm em casa um porta-retratos, mantido em lugar de destaque, com uma foto ao lado dele tirada em algum canto deste País? Ou de fora dele.
Recorro a uma entrevista que assisti ontem na tevê. O repórter perguntava ao Pelé, em matéria comemorativa dos seus 70 anos de vida: “Você passou algum dia na sua vida sem dar pelo menos um autógrafo?”. Ele pensa um pouco e dispara: “Olha, desde que eu fui pra seleção, acho que os únicos dias que não dei autógrafo foram aqueles em que não saí de casa. E mesmo nestes tinha que assinar um cheque ou outro”, brinca.
Daqui exatos 15 dias, Lula sai com seu caminhão de mudança em direção ao apê de São Bernardo. Se ele fizer dois discursos por dia até lá – Natal incluso, ele vai levar a Dilma para conhecer os catadores de papel de São Paulo – faltam apenas mais 30 do metalúrgico presidente.
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