Venda de empresas do setor, além de sucateamento causado por falta de investimentos, gerou quadro caótico. Para reverter a situação, governo Lula teve que qualificar e intensificar a ação estatal.
Por Glauco Faria
Há pouco tempo o jornal Folha de S.Paulo virou motivo de piada no Twitter ao dar manchete em uma edição de domingo na qual que atribuía à Dilma Rousseff a responsabilidade pelo consumidor ter pago R$ 989 milhões a mais do que deveria entre 2002 e 2007 por conta da tarifa social de energia. A argumentação do periódico caía por terra quando se constatava que a lei havia sido criada no governo FHC e ali o jornal perdeu a oportunidade e o gancho pra discutir a gestão do setor elétrico durante os oito anos de tucanato. Os prejuízos foram bem maiores.
Tomemos como base um outro relatório do mesmo Tribunal de Contas da União (TCU), órgão que fundamentou a matéria do diário paulistano. O mesmo calculou que o consumidor residencial arcou, por meio de repasse tarifário, com 60% do prejuízo total do apagão de energia que o Brasil sofreu em 2001 e 2002. Isso correspondeu à soma de R$ 27,12 bilhões à época, o que, em valores corrigidos, seriam R$ 45,2 bilhões em 2009. Outros R$ 18 bilhões foram custeados diretamente pelo Tesouro Nacional, ou seja, também pelo cidadão.
Mas é bom lembrar que existiram prejuízos de outra ordem. O racionamento fez com que a atividade econômica despencasse. A taxa de crescimento do PIB caiu de 4,3%, em 2000, para 1,3%, em 2001, tendo como consequências, entre tantas outras negativas, o desemprego e a queda da arrecadação. Mas o importante, para efeito de comparação entre os dois projetos que se enfrentam no segundo turno dessas eleições, é lembrar porque essa crise eclodiu.
Na época, a culpa era atribuída à falta de chuvas. O nível dos reservatórios que abasteciam o complexo hidrelétrico brasileiro havia baixado a níveis críticos no fim de 2000, no entanto, essa redução vinha ocorrendo desde 1997 e nada foi feito. E o governo sabia da urgência. Um relatório elaborado pela Comissão de Análise do Sistema Hidrotérmico de Energia Elétrica, em 2001, constatou que a a crise teria sido evitada caso as obras identificadas nos planos decenais da Eletrobrás tivessem sido plenamente executadas, no tempo devido.
Mas por que o governo não agiu a tempo? Pelas normas estabelecidas depois dos diversos acordos firmados com o Fundo Monetário Internacional (FMI), o uso de recursos públicos era tratado de maneira igual, fosse gasto ou investimento, e era tolhido. Isso atava as mãos das estatais, mesmo daquelas que tinham resultados econômicos positivos e capacidade para investir com recursos próprios. Também não era permitido ao BNDES emprestar recursos a elas, ainda que, paradoxalmente, a mesma agência de fomento tenha sido fundamental para financiar e assegurar a privatização ocorrida no setor.
Na verdade, a privatização no setor de geração de energia não teve como objetivo principal a expansão da capacidade de produção, o que se privilegiou nesse processo foi a venda dos ativos existentes para os novos agentes, que compraram unidades de produção de eletricidade já instaladas. O marco regulatório implantado à época ajudou a criar um ambiente de incertezas que não incentivava a realização de novos investimentos.
Retomada do Estado
Pode-se ver que a situação, quando Lula assumiu em 2003, era das piores. As distribuidoras estavam em situação financeira difícil por conta do racionamento que derrubou a demanda, causando um elevado endividamento. Ao mesmo tempo, as empresas geradoras, a maior parte estatais, estavam insatisfeitas com a perspectiva de descontratação de energia e também sofriam com a queda da demanda, trabalhando em um ambiente de sobre-oferta.
Assim, foi necessário reforçar e qualificar a ação estatal. Estabeleceu-se um novo marco regulatório que dava estabilidade ao setor e garantia a expansão, promovendo a possibilidade de universalização dos serviços de energia elétrica. E isso só foi possível porque as empresas geradoras e transmissoras do grupo Eletrobrás (Furnas, Chesf, Eletronorte e Eletrosul) foram retiradas do Plano Nacional de Desestatização (PND) e puderam voltar a realizar investimentos. Foi preciso recuperar também empresas, por meio da atuação da Eletrobrás, que estavam sucateadas e não tinham entrado no rol da privatização por não terem mercado, como as dos estados do Acre, Rondônia, Amapá, Amazonas, Roraima, Alagoas e Piauí.
O depoimento do diretor de Engenharia da Eletrobrás, Valter Luiz Cardeal, é elucidativo em relação ao que acontecia nas gestões anteriores. Segundo ele, cada empresa que integrava o sistema “andava sozinha”, não havia uma coordenação que caracterizasse de fato uma holding. Além disso, ao contrário do discurso adotado por José Serra nessa campanha, havia uma grande apropriação política e foi preciso retomar essas empresas e estabelecer um só comando. Foram dispensados 36 “diretores políticos” e estabelecidas normas para buscar o aperfeiçoamento da governança e a reabilitação de negócios e distribuição de energia.
Hoje, a Eletrobrás é a décima maior empresa do setor no mundo e, ao mesmo tempo que é uma holding de capital aberto voltada para o gerenciamento do setor elétrico também atua como uma agência de desenvolvimento que operacionaliza e participa de alguns dos principais programas sociais do governo, como o Luz para Todos, o Programa Nacional de Conservação de Energia Elétrica (Procel) e o Reluz.
O resultado de toda essa reorientação também pôde ser visto, por exemplo, em 2006, quando o Sul do país enfrentou a maior seca dos últimos 60 anos e mesmo assim não houve problemas de abastecimento. A situação foi contornada porque o Brasil duplicou a capacidade de transmissão de energia entre o Sul e o Sudeste, que pôde mandar energia para a região vizinha. Dessa vez, São Pedro não precisou ser responsabilizado pelas mazelas de um Estado ausente.
Esse artigo foi escrito a partir de trechos do livro O governo Lula e o novo papel do Estado brasileiro (Fundação Perseu Abramo), disponível aqui.
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